O
Novo Paquete FUNCHAL há 50 Anos
Texto
de LUÍS MIGUEL CORREIA
Fotos
da colecção L. M. CORREIA
Portugal
desenvolveu uma importante frota de navios de passageiros no período
que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, mais concretamente entre
1947 e 1966.
Nesse
ano de 1966 os quatro principais armadores portugueses, Companhia
Colonial, Companhia Nacional, Empresa Insulana e Sociedade Geral
operavam com 26 navios de passageiros, alguns dos quais eram o
orgulho nacional, a par do futebolista Eusébio e da fadista Amália
Rodrigues. A maior parte destes paquetes asseguravam as carreiras
regulares para o Ultramar e o movimento de tropas entre Lisboa,
África e o Extremo Oriente. Em paralelo, desde a década de 1930 que
se havia criado uma tradição de efectuar cruzeiros turísticos para
o mercado português com os nossos paquetes.
A
empresa de navegação mais antiga era então a Insulana, que
assegurava desde 1871 o transporte de passageiros, correio e carga
entre o Continente e os Açores, tendo alargado a sua actividade à
Madeira em 1875. Com os anos a Insulana tornou-se parte da vida e
história das Ilhas, com os seus navios a figurarem repetidamente
como figuras centrais do “Dia de S. Vapor”, o dia da passagem
regular por cada uma das Ilhas. Com os anos foram-se sucedendo
diversas gerações de navios, com destaque para os vapores LIMA
(1923-1968) e CARVALHO ARAÚJO (1930-1970), cuja substituição foi
considerada no âmbito do Despacho 100 em 1945, por dois navios de
4.500 toneladas e lotação para 300 passageiros que não chegariam a
ser construídos.
A
questão da substituição do velho LIMA, que já navegava desde
1908, primeiro com bandeira alemã e o nome WESTERWALD, ao serviço
da empresa Hapag, e com as cores portuguesas a partir de 1916, foi-se
tornando cada vez mais premente e assim, em Agosto de 1959 a Empresa
Insulana encomendou a um estaleiro da Dinamarca a construção do
paquete FUNCHAL, que custou então 202 mil contos. Passados 26 meses
o novo paquete das Ilhas entrou em Lisboa, a 19 de Outubro de 1961,
vindo de Elsinore e no dia 4 de Novembro seguinte saiu do Tejo pela
primeira vez, em viagem inaugural à Madeira e aos Açores.
UM
NAVIO DE LUXO
A
entrada do FUNCHAL ao serviço no final de 1961 revolucionou o ritual
das viagens entre Lisboa, o Funchal e as ilhas dos Açores.
Fernando
Lemos Gomes, conhecido designer e artista plástico, autor de
diversos quadros belíssimos retratando paquetes portugueses, recorda
as suas viagens a bordo do novo navio nos anos 60: “O FUNCHAL
representou um progresso enorme, era um navio moderno, rápido e
luxuoso, com interiores amplos decorados com um gosto refinado,
belíssimos sofás de cabedal, anteparas forradas com madeiras muito
bonitas. Impressionou-me bastante a democratização introduzida
pelo FUNCHAL, ao nível da estratificação das classes a bordo,
muito atenuada com a subtileza da classe turística A e B a
substituir as antigas segunda e terceira classes, e a separação
longitudinal dos diversos alojamentos e espaços públicos, em vez do
anterior sistema de divisão vertical em que a primeira classe
ocupava a zona central do navio, a segunda classe se situava à popa
e a terceira na proa.”
De
facto o FUNCHAL foi um navio particularmente feliz desde a sua
concepção, tendo o projecto preliminar sido desenvolvido pelo
Engenheiro Construtor Naval português Rogério de Oliveira em
conjunto com o Armador Sr. Vasco Bensaude. “O FUNCHAL nasceu em
1958 em sessões de trabalho com o Sr. Vasco Bensaude, no seu
palacete de Benfica, em reuniões que se prolongavam até de
madrugada, em que ia traduzindo em desenhos as ideias muito precisas
do Sr. Bensaude” - contou-me um dia o Almirante Rogério de
Oliveira, que antes já tinha projectado o PRÍNCIPE PERFEITO. De
facto o armador Vasco Bensaude era uma pessoa com elevado gosto e
sentido estético, habituado a viajar nos melhores paquetes do mundo,
tendo o FUNCHAL reflectido os mais elevados padrões de qualidade e
estética.
Por
volta de 1955 a Madeira registava a visita de 11 mil turistas
estrangeiros anuais que faziam férias nos diversos hotéis então
existentes na ilha. Pensava-se que o desenvolvimento do Turísmo era
a grande aposto para o futuro da Madeira, e como sem bons transportes
não era possível atrair visitantes, foi decidida a construção do
FUNCHAL. O navio tinha 10.000 toneladas de arqueação bruta e
lotação para 400 passageiros, sendo 80 de primeira classe, 156 de
turística A e 184 de turística B. Media 152 metros de comprimento
com 19 metros de boca, e estava equipado com turbinas a vapor Parsons
desenvolvendo 13.800 cavalos, que accionavam dois hélices a uma
velocidade de serviço de 21 nós, o que permitia fazer a viagem de
Lisboa ao Funchal em 26 horas apenas.
Nos
primeiros anos de actividade, a operação do FUNCHAL resumia-se a
duas viagens seguidas Lisboa – Funchal – Tenerife e regresso
intercaladas com uma viagem Lisboa – Funchal – Ponta Delgada –
Horta – Angra do Heroísmo. As dimensões do navio haviam sido
limitadas precisamente pela escala na capital da ilha Terceira, cujo
porto não era acessível a navios maiores. Para além das carreiras
à Madeira, Canárias e Açores, o FUNCHAL começou a fazer cruzeiros
logo em Dezembro de 1961, tendo efectuado nos primeiros anos de
operação diversos cruzeiros às Ilhas Atlânticas, Norte de África
e ao Mediterrâneo.
Outro
aspecto importante da operação do FUNCHAL no tempo da Empresa
Insulana foi a utilização do navio pelo Presidente da República em
viagens oficiais e particulares: o Almirante Américo Thomaz utilizou
o FUNCHAL em viagens oficiais aos Açores, Madeira, Cabo Verde, Guiné
e Brasil, tendo em Abril e Maio de 1972 efectuado uma longa viagem de
Lisboa ao Rio de Janeiro para representar Portugal nas comemorações
dos 150 anos da independência do Brasil, para cuja finalidade o
FUNCHAL foi equipado com uma piscina e pintado com casco azul escuro,
adoptando as mesmas cores do iate da rainha de Inglaterra.
O
escritor açoreano Vitorino Nemésio que se definia como “Passageiro
encartado dos navios da Insulana dos velhos armadores Bensaúdes”
foi outra das personalidades a viajar frequentemente no FUNCHAL,
tendo deixado escrito no livro de honra do navio, em Outubro de 1963,
um testemunho sentido do seu encanto pelo novo paquete: “tudo neste
FUNCHAL up to date me deslumbra: a velocidade record, a linha dos
decks elegantíssimos (…), a casa de navegação apetrechada dos
mais finos nervos da náutica, e enfim a ponte onde o impecável
Comandante Bio, com a sua tripulação exemplar, vela por todos
quantos aqui vão.”
EX-LÍBRIS
DA MARINHA MERCANTE PORTUGUESA
Após
12 anos a navegar para as Ilhas, em 1973 o FUNCHAL sofreu uma
modernização importante, que incluiu a transformação dos
alojamentos para classe única e a substituição das máquinas a
vapor por motores Diesel, muito económicos, e regressou ao serviço
com o casco branco, passando a fazer cruzeiros durante todo o ano nos
mercados internacionais. Em Fevereiro de 1974 passou a ser
propriedade da companhia CTM, e por pressão governamental regressou
à carreira das ilhas de Setembro de 1974 a Outubro de 1975, após o
que ficou imobilizado em Lisboa, sendo encarada a sua venda.
Foi
nesta fase que surgiu na vida do FUNCHAL uma personagem que seria
determinante no futuro do navio: o armador grego Sr. George
Potamianos, que afretou o FUNCHAL pela primeira vez para uma série
de cruzeiros na Escandinávia de Maio a Agosto de 1976, repetindo a
operação de 1978 a 1985, ano em que acabou por se tornar armador do
FUNCHAL na sequência da liquidação pelo Estado Português da CTM.
Gerido
pelo armador Potamianos a partir de Lisboa, o FUNCHAL regressou ao
serviço em Dezembro de 1985 com bandeira do Panamá e tripulação
portuguesa, colhendo um sucesso imediato e servindo de suporte
inicial ao desenvolvimento de uma frota, hoje conhecida por Classic
International Cruises que em 1988 seria aumentada com o grande
paquete VASCO DA GAMA, ex-INFANTE DOM HENRIQUE, e hoje totaliza cinco
navios de passageiros clássicos todos a operar nos mercados
internacionais com bandeira portuguesa.
Com
o decorrer dos anos o FUNCHAL foi sendo sempre actualizado e
modernizado por forma a manter a sua operacionalidade e em 2001
voltou a ter bandeira portuguesa. Hoje o FUNCHAL é reconhecido pelas
suas características únicas e muito apreciado um pouco por todo o
mundo, da Bélgica e Alemanha à Austrália, onde operou diversas
vezes com o maior sucesso. A implementação de novas regras da
Convenção SOLAS 2010 relativas a segurança e salvaguarda da vida
humana no mar, que entraram em vigor em Outubro de 2010 obrigaram à
retirada temporária do FUNCHAL, que se encontra em Lisboa desde 16
de Setembro último, a sofrer uma modernização profunda, por forma
a corresponder aos mais recentes critérios de segurança e conforto
do mundo actual. Os alojamentos do FUNCHAL estão a ser totalmente
reconstruídos, com materiais incombustíveis, o casco foi renovado e
as máquinas principais recondicionadas. Com esta intervenção o
actual armador Sr. George Potamianos está a investir cerca de 12
milhões de euros no navio, que vai passar a ser um iate de luxo, com
243 camarotes, dos quais 86 suites e junior suites, melhorando muito
a área dos camarotes em relação aos tamanhos originais e
oferecendo uma alternativa clássica, confortável e elegante à
actual geração de gigantescos navios com capacidades para de 3000 a
6000 passageiros.
Com
as baixas entretanto verificadas na frota de navios clássicos,
vendidos para sucata na sequência do SOLAS 2010, o renovado FUNCHAL
reforça as suas caraterísticas únicas, aliadas a formas do casco e
qualidade de construção invulgares que permitem antever o FUNCHAL a
fazer cruzeiros por muitos e bons anos. Terminada a reconstrução, o
FUNCHAL volta ao serviço em Julho próximo com dois cruzeiros a
partir de Lisboa um dos quais, comemorativo dos 50 anos do navio, à
Madeira e Porto Santo.
Entretanto
foi decidido valorizar a imagem clássica do FUNCHAL, pelo que quando
regressar aos cruzeiros no início de Julho o navio volta a ter as
cores com que saiu do estaleiro Elsinore em Outubro de 1961: casco
preto, chaminé amarela e preta, com um toque de modernidade dado
pelo emblema da CIC na chaminé e uma risca amarela no costado. O
FUNCHAL volta assim a ser um dos mais bonitos navios do mundo,
continuando a navegar com o nome original e a bandeira portuguesa,
após 50 anos de navegações e cruzeiros. Um caso único no mundo
global dos nossos dias. Parabéns ao FUNCHAL e muitos mais anos de
vida...
Bibliografia:
- PAQUETES DOS AÇORES, de Luís Miguel Correia, Edições EIN, Lisboa 2008
- PAQUETES PORTUGUESES, de Luís Miguel Correia, Edições Inapa, Lisboa 1992
- Jornal da Marinha Mercante, Lisboa, 1958-1972
- Revista de Marinha, Lisboa, 1972-1995
- SHIPS & THE SEA, Editor L. M. Correia (http://lmcshipsandthesea.blogspot.com)
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1 comentário:
Este artigo, escrito em 2011, quando o FUNCHAL era ainda propriedade de uma das empresas de George P. Potamianos, é um dos muitos originais meus dedicados à história e actividades deste paquete, que tenho vindo a publicar desde 1981.
Outros originais serão publicados proximamente bem como excertos do livro PAQUETE FUNCHAL de 1961, que tenho em preparação. LMC
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